Perfume de Baunilha
Seu olhar era grande e definitivo; buscava sem pressa uma alma dentro de meu crânio, um espírito acorrentado, um rastro de psique, qualquer energia que pudesse farejar para continuar ao meu lado quando já não possuísse olhos. Questionamos várias vezes como seria do outro lado, para além dos ouvidos, narizes e bocas, mas nossas respostas recatas não passavam de remédios para a certeza do incerto.
– Como te encontro depois?
– Vou passar perfume todos os dias. – Sussurrei em seu ouvido. – O de baunilha, seu favorito.
– Será o suficiente?
– Deus fará que sim.
Acariciei sua bochecha e limpei o suor frio com as pontas dos dedos. Lambi-os; soube-me a medo. Mas também amor. Era como se ambos tivessem crescido da mesma árvore e caído do mesmo fruto, mas separados já dentro da boca.
Visitei uma última vez a sua decisão:
–Tem certeza?
–Sim.
Respondeu antes mesmo que pudesse terminar a pergunta. Sabia que à essa altura ela já não desistiria: nunca voltava com suas decisões – era como a mãe. Pedi para que ela se sentasse na bacia e ela o fez sem pestanejar. Temia ter feito medições erradas, mas seu corpo coube perfeitamente no recipiente e ficou lá, de pernas cruzadas, tremendo como quem sabe a data do apocalipse.
Com a ferramenta em mãos, me aproximei. Primeiro limpei seu pescoço suavemente com algodão e álcool; vi as marcas de nossas aventuras em sua pele e pela primeira vez hesitei. Pensei em nossos dias apodrecendo juntas, nos horrores compartilhados, no sangue misturado, nas noites voluptuosas e intermináveis. Tive vontade de acordar. Mas aquele era nosso sonho desde a primeira vez que nos entregamos uma à outra e não poderia desistir por egoísmo. Encostei o metal gelado em seu pescoço e esperei que lágrimas surgissem no rosto dela. Esperei durante um bom tempo que o desespero e a desistência brotassem como haviam feito várias vezes antes, mas os olhos brilhantes continuavam firmes e inquestionáveis. Nunca haviam sido tão firmes e tão inquestionáveis.
O que me deu coragem para continuar foi a lembrança do futuro que viria. Do privilégio que teríamos, da bênção que pouquíssimos ousaram pensar presos pelas cortinas de falsas morais e que mais poucos ainda puderam realizar. Arrepiei-me diante da proximidade do gosto da fruta do paraíso.
Finalmente compartilhamos línguas para nunca mais. Um ato tão desesperado de amor, terror e paixão que a saliva escorreu pelo seu queixo e pingou nas coxas nuas cheias de cicatrizes. Quando me afastei, não me dei tempo a pensar, não me permiti considerar a desistência: segurei o bisturi com a firmeza de um cirurgião e abri todos canais de seu pescoço em um único risco. O som da surpresa e do engasgo arrebataram-me e tremi diante do irretornável.
Ela olhou para mim uma última vez e entre soluços e convulsões, numa descida desenfreada ao sono eterno, tive o horror de questionar se seus olhos demonstravam paixão ou arrependimento.
Tudo depois foi automático, involuntário, metódico. Não me permiti erros. Cortei os pulsos e esperei que o vermelho enchesse a bacia. A levei à mesa e, com a precisão e cuidado cultivados durante todos meus anos, descosturei o que Deus costurou, separei o barro da rocha, a alma do corpo e a água do vinho. Manejei sua carne com tanto amor que chorei ao pô-la na panela, aterrorizada de prazer pela sensação dela me assistindo num lugar longínquo.
Ela havia encontrado o rastro de baunilha.
Depois de horas de preparo, com o único acompanhamento do vinho de suas veias, finalmente me permiti o privilégio de consumi-la. De unir-me novamente com minha irmã.
13/08/24