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Anatomia: a cartografia biopolítica

A anatomia é mais que um estudo sobre o corpo, suas partes e funções. É a produção de discursos que descrevem quais partes do corpo devem fazer o que: as mãos servem pra pegar, os pés para pisar, o cu para cagar, o vagina para penetrar. Na sociedade da anatomia, aqueles que fogem dessa imposição são anormais, estranhos, pervertidos, desviantes. Essa ciência impositiva molda como a sociedade enxerga e desenvolve práticas sexuais e zonas erógenas do corpo. Podemos analisar a anatomia como um saber-poder, isto é, como uma ferramenta criadora de conhecimentos capazes de coagir os indivíduos. Essa ferramenta naturalmente pertence à força-motriz dominante da sociedade - que durante os últimos séculos tem sido o capital. Tomemos, a fim de exemplo, o processo de acumulação primitiva. Durante o vigor das políticas mercantilistas europeias, prevaleceu a ideia - junta do metalismo - de que a população de uma nação indicaria sua riqueza. Quanto mais pessoas, mais trabalhadores e portanto maior produção material. Tal pensamento mudou drasticamente aspectos da vida social, especialmente para as mulheres. Como Silvia Federici detalhadamente explica em Calibã e a Bruxa, durante a acumulação primitiva, as mulheres sofreram imposições de todos os lados por parte do Estado enquanto este tentava controlar a força reprodutiva das mesmas. Anticoncepcionais, sodomia, aborto e qualquer outro processo visto como um obstáculo para a reprodução social, deveria ser imediatamente destruído. Da mesma forma, a anatomia foi moldada para preservar esses valores. É a partir daí que surge uma necessidade de uma ontologia do cu, uma descrição detalhada de sua existência e seu devir. A anatomia ascende moldando o modo como o cu deve funcionar: para defecar e não para o sexo, pois esse último é um obstaculo para a reprodução, para a produção material, para o capital. Por que dar a bunda, docking e footjob são práticas mais obscenas ("pervertidas") do que a penetração vaginal? Pois essas atividades violam a cartografia corporal; elas fogem da função que foi atribuída ao cu, ao pau e aos pés. Como defendido por Paul Preciado no Manifesto Contrassexual, para termos liberdade e decisão sobre nosso corpo e sexualidade, devemos desconstruir os discursos dominantes que tentam normalizar as práticas do prazer. Zonas erógenas são mais que locais sensíveis. O sexo é mais do que a penetração. O pau não serve para penetrar, a vagina não ser para ser penetrada; a ontologia "natural" deve cessar de existir pois ela nunca realmente existiu. Em pró de nossa liberdade sexual, a anatomia deve ser ultrapassada. Não simplesmente negando seus dizeres, mas construindo outros, abraçando o subversivo e moldado saberes a partir dele.


Referências bibliográficas:

  • História da sexualidade - Michel Focault
  • Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva - Silvia Federici
  • Manifesto Contrassexual - Paul B. Preciado